Se você assistiu a tomada do helicóptero onde David Lama alcança o cume da montanha que dá nome ao filme – Cerro Torre – em um fim de tarde sobre o campo de gelo, então eu acredito que não preciso lhe explicar muita coisa. Mas, se ainda não viu essa cena, ainda assim acho que algumas fotos serão suficientes para convencer você do porquê El Chaltén se tornou um dos meus lugares preferidos no mundo.

Como viajante cujo trabalho passa por reportar os lugares que encontro e as situações em que me envolvo, expor certos destinos acaba por ser, de certa forma, um desfavor. Narrar locais que eu gostaria de manter em segredo passa a ser um drama pessoal, daqueles que, provavelmente, eu vou me sentir culpado por um bom tempo.

Gravada aos pés da Cordilheira dos Andes, décadas atrás a pequena e desorganizada vila de El Chaltén era apenas um destino de fazendeiros ermitões com cara de poucos amigos e montanhistas durões. Um reduto para quem buscava ascender à alguns dos picos mais inacessíveis e isolados da Terra, com faces verticais cobertas de gelo, vento inclemente e condições climáticas imprevisíveis.

Fundada em 1985 para pôr fim a disputa fronteiriça com o Chile na região do Lago del Desierto e reafirmar a soberania da Argentina, hoje é a cidade mais jovem do país. Um pequeno povoado, onde sabe-se lá se existe prefeito, e que durante o inverno mantém menos de mil pessoas residentes. Como de praxe na Patagônia, com a chegada do verão a população sazonal dá um salto enorme. Fanáticos por trekkings, alpinistas, mochileiros e pessoas atrás de trabalho dão vida e combustível ao lugar.

No entanto, Chaltén continua sendo um lugar extremamente rudimentar, com pessoas desconfiadas visto sua inocência, pousadas simples e que dão a impressão que você está na verdade em alguma região pouco acessível no Himalaia. Pressa é algo que não existe e lugares que aceitam cartões de crédito são considerados exceções. O gás chegou ali há menos de uma década, existe um único posto de gasolina que parece ser de brincadeira e os mercados estão sempre um tanto quanto “desfalcados” de produtos básicos. Talvez a presença de algumas ruas asfaltadas seja apenas o que destoe aos olhos do recém-chegado.

Na primeira vez em que estive no povoado, ao ver a silhueta denteada da cordilheira gradativamente ganhando corpo durante a chegada, eu prometi para mim mesmo que se em algum momento eu tivesse uma casa na Argentina, teria que ser ali. É claro, até aquele instante, eu não fazia ideia de que as casas e terrenos já eram negociados há muito tempo em valores exorbitantes e em dólares americanos.

Pra minha sorte, a alta temporada havia terminado. Os horários de ônibus já estavam reduzidos, algumas pousadas com as portas fechadas e o banco para estrangeiros aberto somente por poucas horas nas quartas-feiras. A vila se preparava para hibernar durante o inverno longe das hordas de viajantes e a sensação era como se eu tivesse voltado no tempo em que forasteiros eram tratados como astronautas.

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Naquela região basta abrir um mapa e as veias da Patagônia são escancaradas. Trilhas que levam à lagunas, condores, montanhas e geleiras. Verdadeiras catedrais da mãe natureza esperando pela visita de seus devotos. Em troca, apenas o pedido de que seus vestígios não sejam notados. Ainda que centenas já estivessem passado pelos mesmos caminhos, para mim, ver aquilo com os próprios olhos era como empunhar o facão de Hiram Bingham.

Desde que os Tehuelches se estabeleceram naquele vale, Chaltén sempre ocupou um lugar central nos princípios religiosos indígenas. Para muitos, ainda é um solo sagrado. Existem regras – não propriamente escritas, mas consensuais – para você permanecer ali. Fazer o máximo de silêncio, apreciar a paisagem, não caminhar fora da trilha e se comportar bem são requisitos básicos. Pequenos detalhes que ditam o tom ao lugar.

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Por vezes, sentado em um banco de madeira frente a um hostel abandonado ou à beira de alguma laguna, tornou-se fácil compreender o caráter contemplativo e a paixão daqueles que escolhem aquele pequeno vale como sua morada. Por um breve segundo, deixa-se fluir a paz que circula tanto pelas estradas como pelas pessoas. Carros aparecem como fantasmas, telefones sem sinal se convertem apenas em máquinas fotográficas e a vida parece ganhar outro ritmo. Graças a beleza cativante e ao espírito de “velho oeste”, acaba sendo um lugar extremamente fácil de romantizar.

Mas, é justamente essa é sua maldição. Todos querem o seu “pedaço” de El Chaltén. E pessoas interessadas em aumentar sua conta bancária costumam não deixar passar uma oportunidade como essa.

Com a melhoria no acesso alavancada por melhores estradas, o aeroporto de El Calafate como porta de entrada e blogueiros como eu – sim, nós somos definitivamente culpados -, a cada temporada mais turistas vêm aportando na região. Todos atrás de tudo o que o local tem a oferecer e do que tanto fazemos coro. Ao mostrar para o mundo tudo o que há de melhor em determinado lugar, acabamos por jogar aos leões aquilo que gostaríamos que fosse mantido para sempre do jeito que encontramos.

Um número maior de pessoas se converte em novos hotéis, maior fluxo de carros, depredação das trilhas por gente que não está “nem aí” e cada vez mais fachadas cobertas com letreiros em inglês. É o chamado progresso, onde lucram alguns, outros são perturbados, faz a região crescer, mas acaba por matar o que fazia dela um lugar especial. O turismo é um predador implacável, que agarra sua nova presa e não a solta até que a última gota de lucro seja sugada.

Para mim, no papel de alguém que escreve e tem o dever de enaltecer determinado local e entusiasmar o leitor, esse passa a ser um sentimento contraditório. Ao passo que a excitação faz você querer dividir sua experiência para que todos possam provar e sentir o que te marcou, ao mesmo tempo, você quer esconder esse local da grande maioria. Ainda que como um forasteiro, toma-se um sentimento de posse sobre a paisagem e você não quer, de forma alguma, que hordas de turistas avancem sobre aquela trilha. Injustamente, baseado em sua própria percepção e critérios, você passa a julgar quem é merecedor sobre aquele lugar.

É um instinto voraz e egoísta, mas inevitável.

Em breve, assim como já ocorre em tantos outros lugares, essa região da Patagônia será tomada por um monopólio de agências de turismo. O lado primitivo, como o conhecemos hoje, vai aos poucos abrir suas portas e dar lugar a algo mais próximo dos padrões 5 estrelas e menos selvagem. Essas mudanças já estão acontecendo e em um ritmo que ninguém pode conter ou controlar.

Portanto, apresse-se! El Chalten é um daqueles lugares onde, não importa o quanto eu carregue de bons adjetivos, você só irá entender de verdade quando estiver por lá. E quem sabe, daqui alguns bons anos, junto comigo você irá olhar para trás com nostalgia para o lugar que mereceu seu amor, mas que só estará vivo, da forma como você o conheceu, em suas lembranças e fotografias.

El Chaltén, 2017.

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One Reply to “Ahonikenk Chaltén”

  1. Muito interessante mesmo! Continue com o bom trabalho!

    Adorei vou recomendar pra todos que conheço um artigo igual a esse vale ouro.
    🙂

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